Corrupção de Estimação

Na Ilha de Moçambique não se passa fome. Em geral, as pessoas não vivem na rua e têm uma cama ou esteira por baixo e um tecto por cima, bem como alguns acessórios e pelo menos uma muda de roupa. Os serviços de saúde, embora precários, estão relativamente acessíveis, há escolas com mínima estrutura e as crianças chegam a ter material didáctico, bolas de futebol ou carrinhos improvisados com caricas e pedaços de madeira. A pobreza não é absoluta; mas existe. Para a maioria dos Ilhéus, a vida é humilde e constantemente limitada. Não desfrutam de luxos, arranjar dinheiro para as deslocações é um desafio e a primeira coisa a pensar de manhã é como vou arranjar algum taco. Mais um dia em África.
Mas Natureza é sábia. Deu(s?) a estas gentes o dom de rir muito, alto e pelas coisas mais simples. Deu(s?)-lhes corpos fortes e mentes espertas capazes de construir e partilhar. Mas é difícil ser feliz. A ausência de meios financeiros para agir em qualquer sentido é lixada – e a vida torna-se aborrecida: dias inteiros são passados a olhar para o calor, vagos passeios sem rumo e longas horas de silêncio figuram o ambiente Moçambicano. É ver o sorriso na cara de alguém que conseguiu uns trocos e sonha imediatamente com alguma actividade.
À medida que o tempo passa, sinto cada vez mais esta pobreza como um fantasma omnipresente, preso na inércia e na preguiça de tudo que nos rodeia. Já entrou nas pessoas há muito, muito tempo e enfraquece os espíritos, come as vontades.

Mas cima de tudo aniquila a moral.
Há o oportunismo em cada encontro (as crianças aos dois anos já perceberam que Ser branco em África é ser dinheiro), há a tentação do furto e o medo de ser roubado, o esquema e a mentira e, sempre e sempre, a corrupção: unindo a carência física à miséria mental, faz parte de um modo de vida trespassa a sociedade. Exemplos: nas Telecomunicações de Moçambique (o que será a PT de cá), o uso da Internet é pago 30 meticais por meia hora – mas quando se liga o Explorer, apenas 50 segundos constituem um minuto. Na escola, as notas compram-se, e, nas obras, quando se dá dinheiro a alguém para comprar algo é obrigatório confirmar a efectividade da transacção e a qualidade do material. Por outro lado, fornecer um instrumento de trabalho a alguém implica correr o sério risco deste ser vendido. Assim mesmo, cara-podre. Vive-se no tentar-arranjar-dinheiro-onde-ele-não-está, e toda a gente tem um preço; baixo, por sinal.
A corrupção está em todo o lado, operando sobre as suas próprias leis. Exemplo: quando um aluno vai comprar a tal classificação, tem que pagar a só um professor, mesmo que queira passar a mais que uma disciplina. Resta ao pupilo pedir a este que fale com todos os outros docentes, pedindo um “favor especial” para este rapaz que até é simpático. E tudo isto porque se um aluno for pedir cada nota individualmente, o preço vai inflacionar - potencialmente até ao infinito – porque cada professor irá pedir mais que o outro. A logística da corrupção é fascinante. Até já ouvi um rumor que a SIDA existe em números muito mais pequenos que os governos africanos transmitem – sendo tudo um esquema para conseguir e desviar apoios estrangeiros.
As mulheres, essas, na sua maioria não trabalham e são movidas pelo que os homens lhes podem comprar (já agora, e voltando á escola, entenda-se que para as estudantes o dinheiro não é a única forma de comprar disciplinas); as autoridades exercem o seu poder para intimidar e ganhar algum – e a desgraça e a falha de um rico é sempre encarada como uma oportunidade.
E depois, de alguma forma, o dinheiro está sempre sujo… e como tal, desaparece. Num consumismo primitivo, é estoirado sem critério, satisfazendo os pequenos vícios de forma fútil e pecaminosa.Tudo isto é intrínseco à sociedade – reparem como falei de entidades oficiais e patronais. Mas nós, brancos, temos que aceitar e compreender; é a realidade e, mesmo que desesperante, não é condenável. A pobreza é assim.

Há que compreender que lutar contra a corrupção é partir para a derrota – o que não invalida a validade e necessidade da guerra. Há que procurar um certo lado bom da humildade e compreender que, apesar de tudo, as vidas não são assim tão diferentes, e as pessoas só estão a agir por instinto – algo que partilham connosco.
Para mim, o mais difícil é assumir que não se pode confiar em quase ninguém.

4 comentários:

joaninha disse...

Assim mesmo, Luís: olhar as coisas de frente e não ter medo delas. Mesmo das mais terríveis!

miguel guedes ramos disse...

Bem, nos primeiros posts já tinha percebido que tinhas jeito para escrever mas à medida que vais relatando o teu dia a dia e as situações com que te tens confrontado, percebo que tudo já se tornou num dos melhores momentos da tua vida! Isto vai-te marcar e deixar orgulhoso! Tens boas razões para isso! Se precisares de alguma coisa minha comunica..

Grande Abraço e boa sorte!

m disse...

Oh mano! A luta, como me disse alguém, está a ser travada por alguns faz séculos e a tua luta não é diferente de outros, resiste e sobretudo não deixes de acreditar que vale a pena! És mesmo querido e estás tão cresscido

Jianna disse...

A mim chamam-me criança sonhadora, desenham-me a realidade, relatam-ma, dizem q e feia e n muda. Pois, eu continuo presistente: a corrupção existe, a pobreza existe, mas o coração tambem. se insistirmos o suficiente talvez os pequenos passos, as pequenas acçoes revelarão q e possivel existir algo d bom no meio da miseria. que a bondade tambem contagia...
Belo blog, magnifica iniciativa...continua
boa sorte e confiança..