Africa Negra (obrigado D.M.C.)

Temo que, por vezes, os textos deste blogue sejam excessivamente pessimistas. Sim, a miséria aqui é infinita, cíclica e encontra-se em cada esquina. Ser sincero implica obrigatoriamente um desenrolar de críticas e observações em tom depreciativo. Mas tenho que dizer: amo a Ilha, Moçambique e o ainda pouco que conheço deste continente. Não é só o seu lado “bom” que me fascina (as paisagens, as simpatias e a força das tradições, as diferenças, as crianças e os sorrisos), mas a própria pobreza e todo um modo de vida que, enquanto ocidentais, consideramos primitivo. Na presença de tanto sofrimento, não consigo deixar de me sentir privilegiado por ter nascido nas condições em que nasci, nesta maravilhosa intercepção entre o tempo e o espaço a que vim parar e que me permite, entre outras coisas, conhecer o nosso planeta.
Só o contemplar desta raça que consegue ser feliz e humildemente viver para procriar é deveras satisfatório – e estou muito, muito feliz. Encontro-me em África há quase 5 meses e aqui, como nunca, vivo, valorizo e aproveito a minha vida. Todos os dias – e à medida que crescem as amizades que me rodeiam - aprendo mais sobre esta realidade, e o sentido é único: este mundo não tem nada a ver com o nosso.
Já me sinto em casa, sem nunca perder a condição de outsider… ora vendo por dentro, ora observando por fora, a cada segundo que passa agradeço mais ao Deus em que não acredito por ter-me feito nascer dentro de mim mesmo. A maior parte do mundo vive na pobreza; e por alguma razão quero conhecê-la e crescer com ela.


A história que vos apresento agora é sobre Hassan. Este senhor é, para mim e até agora, o expoente máximo de toda a carência Africana – e dizer que a sua vida é de cão é mais realista do que metafórico. A sua figura é tão grotesca quanto sinistra e, simplesmente, é um ser sem ponta por onde se pegue e desprovido de qualquer perspectiva de melhorias. Hassan não vive; sobrevive.
Ninguém - incluindo ele próprio – me soube ainda explicar o porquê daquela deficiência: com cerca de 30 anos, tem pernas do tamanho de uma criança de 5. Magras, fracas, são absolutamente inúteis; e o contraste com o seu tronco anormalmente forte, esculpido por aquela vida passada a rastejar torna todo a sua existência num espectáculo surreal e arrepiante.
Por outro lado, a forma como ele (não) se insere na sociedade é também assustadora. De certa forma, a pobreza geral que existe em África não deixa espaço para aquilo que nós chamamos “solidariedade”. Toda a gente sofre, toda a gente morre e a toda gente morre alguém. E mergulhar na tristeza e sensibilidade é desperdiçar tempo. Hassan não inspira pena a ninguém – mas a puraverdade é que não a merece. A sua deficiência física implica uma triste postura mental, bem como uma absoluta falta de princípios e ideais; assim, todos – todos - têm razão quando cruamente dizem que ele é um bêbado sem esperança. E lá do seu carrinho que um dia um branco lhe deu, ou do próprio chão, Hassan agarra em pedras diz que os vai matar a todos, que são uns mentirosos e ladrões. E os outros, como reagem? Rindo-se, claro.
A minha história nasce da vontade quase irracional de contrariar esta opinião pública – e à força impor a minha crença infantil que ele podia mudar, endireitar-se e fazer de si próprio algo de menos desprezível. Sonhei com um Hassan simpático que, enquanto deslizava pelas ruas da Ilha, vendia aos turistas e aos locais os diversos artigos que carregava na parte da frente do tal carro. Comprei-lhe 200 Meticais (cerca de 5 euros) em pequenos artigos: cigarros Turismo e fósforos Nampula, bolachas Nice e rebuçados Saua-Saua, aos quais podia aplicar o valor acrescentado de um serviço móvel e ainda com a hipótese de umas milagrosas gorjetas. Fiz pequenas duas tabelas – uma para mim, uma para ele – com os preços unitários de cada produto aquando da compra e da hipotética venda, calculando o lucro e pressupondo: metade é para o seu bolso, metade para comprar mais mercadoria e alimentar o seu negócio. Hassan ficou encarregue de registar os gastos e controlar os custos, tendo eu direito aos devidos relatórios. Não sou gestor nem economista, mas pensei (e ainda penso) que podia funcionar.
Por ter ido visitar Cuamba e por ter que fazer um visto novo no Malawi, estive duas semanas fora da Ilha, e devido à aleatoriedade da vida não o encontrei por aí durante cerca de 10 dias. Quando finalmente o encontro, são 4 da tarde e Hassan está bêbado, no chão, tropeçando… nas palavras, claro. O dinheiro? Diz que foi todo para um pneu novo. O carrinho? Diz que o roubaram.
Mas a verdade verdadeira é que Hassan vendeu tudo o que eu lhe dei – mais a sua cadeira de rodas – para gastar em álcool. Bem que me avisaram.
Já disse que adoro África não já?

5 comentários:

Duarte MC disse...

Lol n se esperava outra coisa do hassan, eu lembro-m dele, veio a perseguir-me a mim e ao fred com a sua natural bezana, no seu carrinho desde o mercado na ponta da ilha ate à internet, a chatear pa lhe dar-mos dinheiro...
Ainda bem q ja te sentes em casa, o q e q ja fizeste mais ai na ilha?
Qeq tas a pensar fazer mais?
Um abr para Africa Negra!

Guilherme disse...

A boa notícia é que o hassan conseguiu recuperar o carrinho. gostei deste texto lula.

Unknown disse...

Luis, fantástico.
As tuas palavras relatam de forma tão transparente aquilo que vives... e sentes...

labastos disse...

Acabo de tomar conhecimento deste vosso projecto, partilhei no facebook (tão moderna.....), e estou impressionada com o tal do Hassan....
acredito que haverá para ele um WAY talvez mais sinuoso do que todos os caminhos que a minha imaginação alcança! talvez o Hassan possa ter one second chance..........

teresa campos disse...

Eu penso que o aconteceu ao Hassan de Moçambique aconteceria ao Tiago de Lisboa ou ao Manel de Coimbra, o homem é alcoolico todu o que arranja é apa fazer dinheiro para depois comprar a "droga"