Prisão de Cuamba

Quem me conhece sabe bem: uma das minhas características mais cerradas é ser pouco dado ao nojo e à frescura. Não me sensibilizo facilmente, não desinfecto as feridas, não tenho problemas com comida estragada, durmo com a pele salgada do mar e do suor, rio-me de quem adoece com frequência e os meus hábitos de higiene são pouco… presentes. Acima de tudo, é um laço que partilho com esta África; andar por aqui descalço, sujo e fedorento faz-me sentir bem e em casa. Tenho orgulho em ser assim, e, por alguma razão, quanto mais me criticam, mais encaro esta abrunhisse como uma espécie de força e de racionalidade; e uma virilidade-de-homem-das-cavernas que algumas miúdas até curtem.

Mas hoje vivi uma experiência que me deu vómitos. Fui visitar a prisão de Cuamba. 184 reclusos dividem-se (24 sobre 24 horas) por dois espaços destinados originalmente a 30 pessoas cada. Esta densidade populacional é chocante – nunca vi nada assim – e o olhar perde-se no meio daqueles vultos que na escuridão parecem humanos fantasmas. Entrar nestes blocos – não obstante a simpatia surpreendente de quem os sobrelota – é uma experiência marcante; e urgiu vir escrever sobre ela.
O cheiro ainda está na minha garganta e, como nunca na minha vida, estou enjoado sem estar doente. Imaginem (reconhecendo á partida que vão estar infinitamente longe da real percepção daquela atmosfera) 40 graus, 90 negros encavalitados em beliches, deitados no chão ou em pé. Baldes para as necessidades (sim, merda e mijo, dia e noite ao lado deles); feridas abertas ou tratadas com óleo de motor. Duas refeições por dia e água no solo. Isto não vi eu, mas é assumido que, para hidratar os presos (lembrem-se dos 40 graus), uma vez por dia, é posta água no chão. E quem quer beber, ajoelha-se como um animal.
A Primeira-ministra de Moçambique assinou uma declaração em como os Direitos Humanos estão banidos destas instalações – e a regra das visitas é simples: quem falar com os prisioneiros sobre a precariedade das suas condições fica lá, retido.
Relações homossexuais desprotegidas, desesperadas e infecciosas, ali no meio, são prática comum; e comum é a prática de lá adoecer e por lá ficar. Ainda há pouco tempo morreram dois reclusos, com cólera – e não só permaneceram nos blocos os cadáveres por uns dias, como não foi, obviamente, feita qualquer limpeza posterior.
Se sinto pena? Não muita. A contracção do céu-da-boca e o remoer do estômago não me deixa espaço para mais nada, e às vezes, em África, o nosso cérebro não tem outra escolha senão aprender a bloquear sentimentos de piedade. Mas não foi fácil olhar nos olhos de homens feitos, que foram presos por roubar e não ter dinheiro para a multa – e ficam naqueles buracos mais de um ano à espera de julgamento.
Estou em África já há 4 meses, e já vi crianças roubarem os ossos do meu cão e comerem os caroços dos restos da fruta que mando para o chão... Já vi muita miséria, muito nojo, pequenas coisas que marcam quem tenha dois olhos na cara. Mas isto foi a visão do inferno.
E amanhã volto lá. Quero falar um pouco mais com aqueles pobres diabos, e levar-lhes qualquer coisa.

2 comentários:

Sara disse...

Sem dúvida q eu "curto", e muito, esse seu lado assim como muitos outros... ler o seu blog é como ler um daqueles livros que não se consegue parar ler ou como esperar pelo próximo capítulo de uma série que realmente nos prende ao sofá (talvez um simpson ou um family guy). Obrigada querido por me fazer rir e chorar ao mesmo tempo e fazer-me sentir cada pormenor e sensação, que vc tao bem descreve. Espero puder sentir o mesmo mas de perto, ao vivo e a cores...

Beijinho Grande

Sara

Unknown disse...

Luís através da tua escrita consegui visualizar a triste realidade em que vivem esses pobres homens.
Senti esse cheiro...
Olhei e vi a escuridão...
Olhei e senti o triste olhar gelado dessas vidas amarradas ao vazio!
Esses homens que não vivem, sobrevivem e alimentam-se do seu próprio sofrimento!

Continua a escrever porque, sem duvida nenhuma, tu és um brilhante escritor e sobretudo um brilhante homem!